sexta-feira, 29 de julho de 2011

Amor enquanto um sentimento cinza


Fim de tarde.

Lá fora, o céu todo jazia em um luto cinza. A janela fechada, bem como todo aquele momento fechado, não permitia que as lágrimas que caiam de Deus inundassem aquela casa. Um silêncio pesado havia acabado de manifestar toda a sua força nos dois. Todas as causas e fenômenos foram corrompidos por uma perplexidade sorrateira.

Sim... Eles haviam brigado.

E o mundo parecia estar completamente apavorado e constrangido com isso. Eles haviam entoado tantas facas que agora sentiam o quanto as cicatrizes recém- abertas sabiam como doer. Um clima ameno de discórdia ingrata fazia brotar um arrependimento tão ensurdecedor que havia os deixado em uma espécie de êxtase do autoflagelo. Os ouvidos nunca desejaram tanto possuir pálpebras contra aquele zunido diabólico chamado culpa. Estavam sentados um em frente ao outro com o coração contrito. Tinham acabado de violar o amor, o mais dual e dialético de todos os sentimentos. Isso era um crime, e seus olhos transbordavam o enorme peso de se haver cometido um crime. Agonizavam uma agonia mansa e dilacerante no trono inferior do pecado. Assim passaram aquele crucial enquanto: sentindo-se como o chão fadado a separar o peso da gravidade. O tamanho da atmosfera, a pressão enfadonha do ar, os fótons dispersos no ar... Tudo era uma opressão imperdoável. Estava esmagando o amor abatido. Qualquer coisa que não se sensibilizasse com a situação soaria como uma puritana covardia.

Ambos permaneciam absortos e devidamente ensimesmados. Não sabiam bem o que olhavam nos olhos do outro, mas o faziam com a maior pormenoridade que pudessem. Estavam esperando com a mesma esperança inocente e heróica de se esperar o primeiro amor – Por que toda a vez que o amor aparece vem fantasiado de primeira vez? - que um dos olhos deixasse escapar algum vestígio de vontade encarcerada há pouco tempo. Eram quatro olhos que desejavam tanto, tanto, tanto, e dois orgulhos que não soltavam nada, nada, nada. Na verdade, eram mais do que dois orgulhos: eram duas vaidades feridas. Duas vaidades frágeis e feridas. Duas vaidades que acabrunhavam e retrocediam os sentimentos em uma relutante tentativa de autodefesa. Queriam, e com a força de quem quer, que tudo aquilo não passasse de uma tempestade e que o sol tão logo aparecesse quanto logo se foi.

Mas o amor queria estar ali mais do que eles queriam que ele não estivesse. Mesmo amassado, o amor não pode ser jogado fora já que ele nunca precisou entrar. Ele sempre esteve ali e os corações simplesmente o percebem um dia. E era isso que o amor cobrava: percepção. Tudo bem que é um sentimento meio egocêntrico. Quando se reconhece, até Copérnico admite que o mundo se torna “amorcentrista”. E o amor queria mesmo atenção. Na verdade, o amor precisava de atenção. E era bem verdade que esta era a atitude mais nobre e humilde que este sentimento já tomou na vida. Porque no fundo o amor sabia que a atenção estava totalmente dirigida a sentimentos menores. Francamente, aquelas coisas nem mereciam serem chamadas de sentimentos, tampouco mereciam ter um nome. O próprio amor reconhecia que ele é a única coisa que deve importar incondicionalmente em todos os momentos da vida, e qualquer coisa que se opuser a isso ou o sabote merece ser sumariamente aniquilada. E era o que o amor queria: aniquilar. E logo tratou de fazê-lo.

O amor prontamente se pôs no meio dos dois. Estava bem ali, para que pudesse ser notado mesmo. E conseguiu. Os dois saíram daquele processo de acrotismo sem propósito.

Desavisadamente se entreolharam. O mais incrível de tudo era perceber que, mesmo um de frente para o outro, eles não estavam mais ali. Transfiguraram-se no longe. No longe que só chegando perto se descobre. No longe que incitava a curiosidade em se saber onde ia dar. Olhavam-se e inevitavelmente foram se comungando. Como duas pontas de corda que depois do nó são um fio só. Como duas mãos de um mesmo corpo que se juntam para uma oração. Comungaram-se de um modo tão completo que lentamente os dois se dissolverão bem como a homogeneidade nas substâncias. E esta era uma substância primitiva, instintiva e animal. Ao seu primeiro estágio, damos o nome de desejo. Isto era bem verdade: o desejo. Qual? O de pertencer. Não somente perceber desavisadamente, mas com tudo quanto pudessem chamar de sentidos. Tudo que seus sentidos pediam, e com urgência, era o outro. O outro de uma forma individual, porém intrínseca. O outro, como se quer o que já se tem sem perceber que já se é seu. E fazendo jus ao princípio de todas as coisas - a aceitação. Disseram "sim". Disseram sim. Sim, disseram! Dois alguéns se aceitaram. Mesmo com contra-argumentos, eram dois alguéns se aceitando. Dizendo sim. Dizendo sim ao nobre dom de se aceitar. O fogo aceitou a chama e a chama aceitou o fogo. O sol aceitou o céu e o céu aceitou o sol. Os mundos aceitaram o cosmo e o cosmo aceitou o mundo. A floresta aceitou as árvores. As flores aceitaram seus caules. As pétalas aceitaram ficar em cima dos espinhos e os espinhos, meu Deus, aceitaram ficar embaixo das pétalas! Praticavam assiduamente o vice-versismo da condição de serem a natureza. Afinal, era natural. E eles aceitaram um ao outro como o ninguém aceitou ser o inverso de alguém. Como o sem aceitou ser o contrário de com. Aceitaram, sobretudo, que não existe ninguém sem e sim alguém com. Aceitaram-se voluntariamente sem perceberem a reciprocidade tão visceral. Aceitaram até as lacunas e deformidades que julgavam serem lacunas e deformidades, mas eram somente encaixes. Saberiam dessa verdade mais tarde quando percebessem que a concavicidade do um era o convexo do outro. E que absolutamente não havia problema em ter concavicidades, simplesmente porque ninguém é uma linha reta. Seria ser paralelo demais!
Naquele momento sentiram-se fragilmente nus... Estavam decididamente expostos.

(...)

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